Na natureza selvagem com o Litro de Luz— Kalunga

Láisa Rebelo
8 min readMay 22, 2021

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Sobre a experiência do trabalho social

Depois de uma temporada em São Paulo, distante da natureza e com trabalhos que não me motivavam, fui recompensada com a minha experiência no Litro de Luz. Nesse período eu pude me reconectar com as minhas motivações: impactar a vida das pessoas, levando soluções significativas.

Chapada dos Veadeiros — Goiás

Essa história aconteceu em 2017, quando eu entrei para o time do Litro de Luz, na célula de Brasília. Naquela época estávamos nos preparando para a próxima ação nacional, que aconteceu em uma comunidade quilombola do povo kalunga, que fica no interior do Goiás, próxima da cidade Cavalcante no coração do cerrado brasileiro.

Quando soube da visita eu fiquei muito animada. Seria minha primeira vez na Chapa dos Veadeiros, mas sabia também que eu iria enfrentar alguns perrengues:

  • Seria uma viagem longa de 7 horas (3h30 de Brasília até Cavalcante + 3h30 na estrada de terra até à comunidade Kalunga)
  • Viajar com pessoas que só havia visto duas vezes na vida;
  • Única forma de tomar banho seria no rio;
  • E claro, sem energia elétrica (internet, telefone);

Na época eu estava editando o site e senti que a gente precisava de mais fotos. Na última hora eu me escalei para ir, eu estava com certo receio de ficar longe de tudo, sem eletricidade e com pessoas que mal conhecia. Falei com uma das líderes da ONG que fez um alinhamento comigo por telefone, ela me explicou e conversou bastante sobre a comunidade e já me senti animada para ir.

A Viagem de 7 horas

Tem coisas que só acordar cedinho proporciona: as cores do amanhecer. Para chegar cedo precisamos sair ainda de madrugada. Fomos encontrando em alguma quadra da asa norte. Devido à estrada de terra, a melhor forma de chegar lá era de Jipe ou carros no estilo 4x4. Com uma parceria do Jipe Clube fomos nesses carros apropriados.

Estrada Brasília — Cavalcante

Fazia pouco tempo que eu estava morando em Brasília. Só tinha visto o sol nascer no cerrado uma vez. Uma das coisas mais lindas que eu já vi. Aqueles tons de laranja com azul que fazem a gente querer viver. É lindo. A maior recompensa de acordar cedo é ver esse fenômeno.

Ficar off-line

O detox de internet é sempre bom. A gente vive tão ligado em internet, em contato que esquece como é ficar sem olhar o telefone o tempo todo ou publicar sobre qualquer bobagem que tenha acontecido no dia.

Copiou?

A viagem foi longa. Eu não estava acostumada a encarar horas de estrada. O carro chacoalhava muito na estrada de terra. Confesso que cochilei algumas vezes por ter recorrido ao Dramin®.

Quando a gente chegou não deu tempo de fazer muita coisa. A gente iria apenas almoçar e correr para fazer as atividades planejadas. Era preciso aproveitar ao máximo a luz natural. Nenhum minuto poderia ser pedido. Confesso que eu pensei que haveria tempo para me sentir entediada, já que ficaria tanto tempo off e no mato…nem de longe!

Aproveitei a oportunidade e me comuniquei via rádio durante a viagem, só para sentir a sensação. Copiou?

A comunidade Kalunga

Os Kalungas representam a resistência negra no Brasil. Eles são a a maior comunidade quilombola do país, localizada na região da Chapada do Veadeiros, no interior do Goiás próximo da fronteira com o estado do Tocantins.

Casa da comunidade Kalunga

Nosso acesso foi por meio de Cavalcante, uma cidade pequena que não pegava celular direito. Inclusive, nos recomendaram levar dinheiro por ser difícil o acesso às máquinas de cartão. A região é cheia de cachoeiras belíssimas. O turismo ecológico deve ser o que mais movimenta a economia local.

Pensar que existem comunidade quilombolas ainda hoje é uma prova de como o nosso país é um lugar de extremos e como a história das pessoas escravizadas ainda é recente. Chega a ser um paradoxo pensar que tão próximo da capital do país tem gente que vive de forma tão simples que sequer possui energia elétrica.

O contato com a comunidade

O pessoal do Litro de Luz já havia feito visitas anteriores, mas para mim era tudo muito novo. Apesar de ter participado de trabalhos sociais, com uma comunidade quilombola que não tinha energia elétrica era a primeira vez. Há um distanciamento muito grande entre a forma como vivemos da deles.

Por isso, era importante exercer muito a empatia na abordagem. Prestar bastante atenção no modo de falar e de agir. É delicado. É preciso saber respeitar e ouvir o outro, deixá-lo à vontade, especialmente porque nós éramos as pessoas estranhas no espaço deles. É preciso muito tato.

Ao chegar na escola havia alguns moradores esperando a nossa visita. Estavam tímidos, não aproximavam muito, mas prestavam atenção. Aos poucos fomos chegando e trocamos algumas palavras.

Gosto de pensar que é uma situação de troca. Levamos um benefício para a comunidade (me questionei como a luz vai impactar na vida dessas pessoas)e, de volta, aprendemos mais sobre eles.

A Atividade do Litro de Luz

Antes de acontecer a ação de instalação de postes e lampiões são feitas várias visitas na região escolhida. É preciso conhecer os moradores, entrar em contato com os líderes do local, mapear a região e tentar prever as dificuldades para que a ação aconteça da melhor forma.

Percorrendo a região

Nos separaram em grupos e eu fui fotografar e auxiliar no mapeamento das casas que vão receber os postes. Chegamos no alojamento, que é a escola da comunidade, por volta das 14h e fomos almoçar, por sorte tinha um almoço pronto lá e pudemos comer juntos. E ganhamos tempo. Tivemos uma pequena reunião e os grupos foram começar as atividades.

A vontade inicial é sair de casa em casa, conhecer um pouco da história das pessoas, perguntar, tirar foto, e sentir as necessidades daquela pessoa e saber como a luz vai modificar a vida dela. Mas o tempo era curto e a gente tinha apenas a luz do sol para nos ajudar até às 17h30! Por sorte, conseguimos visitar a casa de algumas pessoas mesmo assim.

Essas casinhas brancas com janelas azuis são do projeto da AGEHAB, que construiu as casas dos moradores do local que tiveram as suas casas tomadas com a enchente do Rio Prata uns anos atrás.

Casa da AGEHAB

Missão cumprida. Conseguimos mapear a região. Foi um pouco corrido mas deu certo. Nesses trajetos precisamos atravessar o Rio Prata dentro do Jeep (foi emocionante, hehe).

Eu gosto de fotografia, mas nunca fiz curso algum. Fotografar dentro do carro, com carro em velocidade, fotografar pessoas e horizontes não são comuns para mim. Foi um exercício. Ficava entre olhar com meus olhos e com as lentes.

A noite sem luz

Ao chegar na escola nos deparamos com o poste do Litro de Luz instalado! Foi o primeiro poste na comunidade Kalunga! Era um ponto de luz em meio a imensidão de escura do cerrado.

Primeiro poste instalado na comunidade Kalunga

A ideia era tomar banho no rio, já que não tinha banheiro. Mas já era noite e decidimos que não era seguro ir. O risco de cair, ter bichos e possíveis problemas nos fizeram dormir sem banho mesmo, sujinhos. O pessoal do Jeep Clube encarou o banho de rio no escuro, eles são mais roots que a gente.

O jantar foi feito com a iluminação dos lampiões do Litro de Luz. Pudemos contar com o poste e com uma lâmpada noturna na sala que dormimos. Viver sem luz é realmente difícil, ainda mais quando nascemos acostumados a ter noites iluminadas. Trocar de roupa, escovar os dentes e comer com pouca luz não é fácil. Ter essa experiência de ficar sem luz nos motivou ainda mais a levar os postes para a comunidade.

Foi emocionante ver a noite estrelada, um céu tão iluminado. Tive a experiência de ver o poste do Litro iluminando uma região que nunca teve energia elétrica. Aquele ponto de luz reuniu todo mundo. Para completar uma fogueira foi improvisada pelo presidente (o Júlio parece o Indiana Jones, estava com um casaco escrito Presidente, e claro, todo mundo tem que respeitar um cara como ele, hahaha).

Tivemos uma noite com histórias que todos contavam, riam, sem interferência de mensagens de whatsapp, sem internet e nem nada. Pura conexão humana. Estávamos ali todos, sendo humanos, sem interferências modernas. Me senti despida da necessidade de estar conectada. Não me incomodou ficar sem banho, comer ali, sentada num batente com um prato e talher de plástico, percebendo o quanto a gente não valoriza os nossos objetos do cotidiano e a vida que temos. Para muitos comer numa mesa, com louça e luz é um verdadeiro luxo.

Ao dormir eu percebi que pela janela quebrada eu conseguia ver as estrelas, nenhum barulho de carro, apenas da natureza. Que momento. O senso de coletividade ali, todos pensando no bem estar do outro, ajudando a se proteger do frio, tornando a noite do outro mais confortável.

Acordar suave

Acordar e olhar o celular só para ver a hora. Não dava para ver a temperatura. Sentir a luz do sol logo cedo, ver as cores que se formam com a luz do dia. Nos reunimos mais uma vez, realizamos mais atividades (analisamos a escola toda) e voltamos para casa.

Rio Prata — Goiás

Por sorte, resolvemos tomar um banho antes de voltar. Fizemos uma parada no Rio Prata, de fato era um banho no rio por necessidade e não apenas por diversão, não imaginei que fosse viver algo assim até então. Nem liguei que o meu cabelo estava duro de tanta poeira e que ficou um fuá depois do banho de rio. Eu só quis aproveitar mesmo, e aproveitei.

Voltamos

Fomos apreciando a natureza, vi pássaros que jamais tinha visto, vi um tucano voando baixinho. Vi raposa e outros animais que não sei identificar.

Paramos em Cavalcante para um almoço, já por volta das 15h da tarde e chegamos à Brasília por volta das 19h. Cheguei em casa por volta das 21h. Estava super cansada, a viagem é cansativa. Mas, chegar em casa e encontrar todos os confortos que a gente tem e nem se dá conta, teve um outro significado.

Eu sabia que da importância da ação do Litro de Luz para a comunidade kalunga, mas vivenciar tudo isso foi o maior exercício de empatia que pude ter.

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Láisa Rebelo

UX Researcher @GrupoBoticário | Mestre em Design (UnB) - Design, Sociedade e Cultura | UX Design | Consumption | Anthropocene | Utopia | Menstruation